A superstição e o fatalismo que acompanham os botafoguenses não estão no meu caderno. Jamais me deixei levar por qualquer esquisitice que pudesse ter o mínimo laivo de superstição. É que eu sou a terceira geração de torcedores do Glorioso: meu avô paterno, Chico Albino, de saudosa memória, meu querido e longevo pai, Argemiro, nos seus noventa e três anos, e eu. Por força dessas circunstâncias, ser botafoguense talvez seja coisa de DNA, de carga hereditária, o que pode ser a forma mais irrecuperável de determinismo. Assim, montado nesse histórico pessoal, passei o vírus para meu filho Pedro, que infundiu sua paixão na filhinha Gabriela, de cinco anos, que já frequenta o Engenhão, sabe todos os cantos e, coisa terrível para um avô, arrisca até uns xingamentos, algo impensável há uns tempos. Por aí vocês veem: já são cinco gerações.
Aliás, essa carga genética se espalhou por todos os meus quatro irmãos e por muitos sobrinhos. Vê-se, por isso, que é quase uma condição familiar.
Desta forma, como vou achar que um sinal nefasto, um gato preto, uma mariposa escura, uma galinha preta arriada numa esquina vão trazer alguma complicação para qualquer jogo? Ou, ao contrário, que um amuleto, uma promessa, uma premonição vão portar bom augúrio?
Eu ia muito bem nessa batida, quando se deu o famoso jogo do segundo turno do Campeonato Estadual de 1989, o ano da graça, no dia 7 de maio, contra o time da Gávea. Estávamos no Maracanã eu, meu filho então com doze anos e meu sobrinho Bruno, já com quinze. Ao final do primeiro tempo, em que perdíamos por 3×1, trocamos de lugar, nas antigas cadeiras azuis, a fim de acompanhar o ataque do Botafogo.
Aquela, até então, era uma jornada melancólica, por tudo o que vinha acontecendo em campo. Atrás de nós estavam uns rapazes, talvez um pouco mais velhos que meu sobrinho, vociferando em nossos ouvidos frases como: “Bebeto, humilha ele, Bebeto! Não faz mais gol, não, Bebeto! Tem pena deles!” Nas cadeiras, à nossa frente, duas senhoras, já entradas em anos: uma botafoguense, sofrendo todas as humilhações, e a outra rubro-negra, abusando do direito de esculhambar.
Quando Gonçalves fez o gol contra que diminuiu a diferença, me levantei e gritei para os dois jovens:
- Ainda dá tempo! Vocês vão ver! Ainda dá tempo!
Um pouco depois, no lance que gerou o nosso terceiro gol, é que a coisa se deu. Quando Mauro Galvão matou no peito a bola que a defesa do outro time chutou de qualquer jeito, no meio daquela chuva toda, numa noite que teria todos os ingredientes para dar errado, vislumbrei um facho de luz vindo não sei de onde, como a destacar o zagueiro dentre todos os outros jogadores. E olhem que eu nem acredito nessas coisas, mas o que vou fazer?
Tão logo ele botou a bola no chão, pressenti que um lance daqueles não poderia se perder numa partida. Havia nele alguma coisa de transcendental, de sobrenatural, de mágico. Ninguém mata uma bola venenosa daquela, pesada, chutada sem dó nem compaixão, para que ela, logo em seguida, não se transforme num cometa, numa estrela cadente. Mauro Galvão não vivera até aquele momento, não jogara bola com a competência de sempre, para, como um cabeça de bagre qualquer, isolar a bola, atirá-la pela linha de lado, entregá-la ao adversário.
O grande capitão, com a categoria que só os predestinados possuem, lançou a redonda para Vítor que, com habilidade, determinação e iluminação, depois de fazer o diabo na defesa rubro-negra, estabeleceu o empate heroico que nos fez aptos a chegar, depois, ao título de campeões invictos de 1989, após vinte e um anos de sofrimento.
Foi a bola estufar as redes do adversário, para começarmos a pular, a gritar, a urrar, a nos abraçar. A senhorinha botafoguense iniciou uma dança tribal desconhecida, em desagravo a todas as ofensas que ouvira até aquele momento. E, se não me falha a memória, incluiu movimentos pélvicos à sua celebração orgiástica. Parecia possuída! Para não deixar moeda sem troco, brandindo o guarda-chuva que levava, virei para os dois jovens da fileira de trás e gritei com toda a força dos meus ótimos pulmões, escandindo as sílabas, no intuito de que não deixassem de entender, no meio da balbúrdia que se formou, um fonema sequer:
- Urubu, vai tomar na olhota do seu cu, seu filho da puta!
Eles não disseram nada. Estavam apopléticos, sem um pingo de sangue no rosto, transformado numa pasta disforme de expressão. É que tinham visto ali, com várias rodadas de antecedência, o Campeão Estadual de 1989, em toda a sua grandeza.
( Crônica de meu amigo e mestre, Saint-Clair Machado, professor de literatura da Universidade Federal Fluminense. Quem quiser excelente leitura á n blog dele Asfalto e Mato Valeu, amigão! Zatonio Lahud)
Aliás, essa carga genética se espalhou por todos os meus quatro irmãos e por muitos sobrinhos. Vê-se, por isso, que é quase uma condição familiar.
Desta forma, como vou achar que um sinal nefasto, um gato preto, uma mariposa escura, uma galinha preta arriada numa esquina vão trazer alguma complicação para qualquer jogo? Ou, ao contrário, que um amuleto, uma promessa, uma premonição vão portar bom augúrio?
Eu ia muito bem nessa batida, quando se deu o famoso jogo do segundo turno do Campeonato Estadual de 1989, o ano da graça, no dia 7 de maio, contra o time da Gávea. Estávamos no Maracanã eu, meu filho então com doze anos e meu sobrinho Bruno, já com quinze. Ao final do primeiro tempo, em que perdíamos por 3×1, trocamos de lugar, nas antigas cadeiras azuis, a fim de acompanhar o ataque do Botafogo.
Aquela, até então, era uma jornada melancólica, por tudo o que vinha acontecendo em campo. Atrás de nós estavam uns rapazes, talvez um pouco mais velhos que meu sobrinho, vociferando em nossos ouvidos frases como: “Bebeto, humilha ele, Bebeto! Não faz mais gol, não, Bebeto! Tem pena deles!” Nas cadeiras, à nossa frente, duas senhoras, já entradas em anos: uma botafoguense, sofrendo todas as humilhações, e a outra rubro-negra, abusando do direito de esculhambar.
Quando Gonçalves fez o gol contra que diminuiu a diferença, me levantei e gritei para os dois jovens:
- Ainda dá tempo! Vocês vão ver! Ainda dá tempo!
Um pouco depois, no lance que gerou o nosso terceiro gol, é que a coisa se deu. Quando Mauro Galvão matou no peito a bola que a defesa do outro time chutou de qualquer jeito, no meio daquela chuva toda, numa noite que teria todos os ingredientes para dar errado, vislumbrei um facho de luz vindo não sei de onde, como a destacar o zagueiro dentre todos os outros jogadores. E olhem que eu nem acredito nessas coisas, mas o que vou fazer?
Tão logo ele botou a bola no chão, pressenti que um lance daqueles não poderia se perder numa partida. Havia nele alguma coisa de transcendental, de sobrenatural, de mágico. Ninguém mata uma bola venenosa daquela, pesada, chutada sem dó nem compaixão, para que ela, logo em seguida, não se transforme num cometa, numa estrela cadente. Mauro Galvão não vivera até aquele momento, não jogara bola com a competência de sempre, para, como um cabeça de bagre qualquer, isolar a bola, atirá-la pela linha de lado, entregá-la ao adversário.
O grande capitão, com a categoria que só os predestinados possuem, lançou a redonda para Vítor que, com habilidade, determinação e iluminação, depois de fazer o diabo na defesa rubro-negra, estabeleceu o empate heroico que nos fez aptos a chegar, depois, ao título de campeões invictos de 1989, após vinte e um anos de sofrimento.
Foi a bola estufar as redes do adversário, para começarmos a pular, a gritar, a urrar, a nos abraçar. A senhorinha botafoguense iniciou uma dança tribal desconhecida, em desagravo a todas as ofensas que ouvira até aquele momento. E, se não me falha a memória, incluiu movimentos pélvicos à sua celebração orgiástica. Parecia possuída! Para não deixar moeda sem troco, brandindo o guarda-chuva que levava, virei para os dois jovens da fileira de trás e gritei com toda a força dos meus ótimos pulmões, escandindo as sílabas, no intuito de que não deixassem de entender, no meio da balbúrdia que se formou, um fonema sequer:
- Urubu, vai tomar na olhota do seu cu, seu filho da puta!
Eles não disseram nada. Estavam apopléticos, sem um pingo de sangue no rosto, transformado numa pasta disforme de expressão. É que tinham visto ali, com várias rodadas de antecedência, o Campeão Estadual de 1989, em toda a sua grandeza.
( Crônica de meu amigo e mestre, Saint-Clair Machado, professor de literatura da Universidade Federal Fluminense. Quem quiser excelente leitura á n blog dele Asfalto e Mato Valeu, amigão! Zatonio Lahud)